Fazer, Ser

Será que você sabe ler? – Leitura crítica | Parte 1

A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar.
[autores a serem revelados no texto]

Desde cedo somos apresentados às letras. Nos primeiros anos da escola há um esforço tremendo para que as formas abstratas das letras, quando unidas, façam algum sentido. Com tempo, começamos a caminhar pelas palavras e elas se tornam uma voz em nossa mente. É como se tivesse alguém ali, falando com você. Mas apesar desse foco inicial na alfabetização, lemos muito mais do que textos escritos. Imagens, movimentos corporais, músicas e outras manifestações também fazem parte do nosso cotidiano de leitura.

Para simplificar, vamos começar pelo texto escrito, pois ele apresenta uma característica essencial: uma vez escrito, ele existe por si só. Quando escrito, o texto se descola do autor. Não carrega o som da voz, todas as nuances da sua fala, as suas expressões faciais (pausa pra você imaginar minhas caretas enquanto escrevo). O texto é simples, mas ainda assim, poderoso. Poderoso porque é uma das primeiras formas de registro da humanidade com a capacidade de atravessar o tempo e o espaço.

Destaco essas características do texto escrito justamente porque tal descolamento do criador nos leva a múltiplas dimensões de leitura. Podemos simplesmente correr os olhos pelas palavras e buscar compreender o que está explícito. Mas podemos também explorar o implícito, tudo mais que circunda o texto, o que não é dito.

O trecho que abre esse texto, por exemplo, fala sobre a felicidade. Em uma primeira leitura, você pode refletir sobre a analogia com a pluma. Para que haja felicidade, é preciso que haja vento sem parar. O que seria o vento? Qual a ideia central do texto? Sim, parece um daqueles exercícios das aulas de Português da escola (que não eram à toa). Este é um primeiro passo: entender o que será que o autor quis dizer. Isso nos leva a um outro nível de leitura: o contexto.

Quem escreveu?
Quando escreveu?
Por que escreveu?
Para quem escreveu?

Parece simples quando colocado assim, mas diante da tsunami de fakenews que vivemos hoje, há de se considerar que muitos não se dão ao trabalho de “ler” o que não é dito. No caso do trecho acima, ele foi escrito por Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Algo muda em relação a sua leitura a partir do momento que conhece os autores? Talvez o texto comece a ganhar alguma sonoridade. Talvez você lembre de outras obras e reconheça o estilo. Sua bagagem – seus conhecimentos prévios vêm à tona. Eu, por exemplo, não sou um bom conhecedor de bossa nova e de história da música, mas ao me aprofundar nesse trecho, descobri que foi escrito para um filme chamado Orfeu Negro, de 1959. E, diferente das demais obras de bossa nova da época, que tinham uma mensagem predominantemente otimista, esta composição, chamada “A Felicidade” beira ao pessimismo. “Tristeza não tem fim / Felicidade sim” é o trecho que começa a música. Parece que esse tom mais pessimista deu-se pela encomenda da música para o filme. Pois que antes de saber disso, quando eu ouvia essa música, me contentava em achar que os autores estavam numa bad profunda (muito muito tristes). Ledo engano.

A leitura dessas múltiplas dimensões pode levar algum tempo, mas costuma ser incrivelmente transformadora. O que você descobre passa a fazer parte do seu repertório, e adivinha só: seu repertório influencia diretamente na interpretação do que você lê.

Mas bem, cá está um designer falando de texto. Parece que a gente tende a mergulhar na parte que nos falta, né? Pois então vou puxar a brasa pra minha sardinha e convidar você a seguir agora em um exercício de leitura comigo. Mas em vez de texto escrito, leremos uma imagem.

Desculpe se lhe causei desconforto, à primeira vista a imagem incomoda, né? Afinal, é uma imagem impactante de um cara gigante comendo outro, já sem a cabeça. Credo! Pois que eu já adianto: continuará sendo um cara comendo outro. Não é uma daquelas ilusões de ótica do tipo pegadinha “aha! vire de cabeça pra baixo e verá bebês sorrindo”. Nope. É essa a cena mesmo.

A primeira impressão de repulsa que você teve é uma percepção inicial, a primeira vinculação daquilo que lemos com o que sabemos. Sabemos que a cena é nojenta. A partir daqui, podemos ter leituras que envolvem os detalhes técnicos perceptíveis para os conhecedores. Por exemplo, alguém pode olhar de perto e notar as pinceladas e supor que seja óleo sobre tela. Mas para esse exercício, faremos o seguinte: vou liberar informações que não estão explícitas, uma de cada vez. Depois de cada uma, você pode voltar pra tela e ver se algo muda na sua leitura.

O autor dessa obra se chama Francisco de Goya (1746 – 1828), um pintor espanhol. Estima-se que a obra tenha sido feita em 1819. Se você já ouviu falar desse pintor ou sabe o que se passava na Espanha do século XIX, talvez tenha algumas ideias do que Goya quis representar. Se você é como eu e essas informações não ajudaram muito, siga adiante. 

Goya era um pintor de afrescos e painéis em igrejas, palácios e fazia retratos dos aristocratas da época, entre eles a rainha Maria Luisa em um cavalo. Os retratos por encomenda, você bem deve saber, eram os filtros do instagram na época. “Me deixe mais alta, por favor”, “Minhas bochechas parecem tão flácidas, faça-as mais rosadas…”. Não devia ser fácil para o Goya. Depois dessa informação, dê uma olhadinha na tela novamente e veja se você a lê de outra forma.

Goya curtia umas baladinhas quando era jovem e antes de ter sucesso como pintor ele fez várias coisas, foi até toureiro. Mas já em meio a carreira de pintor, quando ele tinha lá seus 30 e poucos anos, especificamente em 1792, ele contraiu uma doença que deixou ele temporariamente paralítico, parcialmente cego e totalmente surdo. Ora, ele não sabia que seria temporário. Imagine o desepero! Parece que depois disso ele cansou dos filtros de instagram e começou a pintar as pessoas como elas eram. #goyaxatiado E agora? alguma novidade na leitura da imagem?

Depois da doença Goya começou uma fase dark. As guerras napoleonicas deixaram ele ainda mais indignado com a natureza cruel do ser humano. Em 1819, já com mais de 70 anos, ele se exilou em uma casa chamada Quinta del Sordo (porque o morador anterior era surdo).  Nessa casa ele decidiu pintar murais, assim como fazia nas casas dos aristocratas. Mas as pinturas que ele fez na casa dele não eram tão alegres. Foram 14 quadros, uma série chamada de Pinturas negras. A imagem que você está lendo faz parte dessa série e consta que ela ficava na sala de refeições.

O nome da tela é “Saturno devorando um filho”. Saturno na mitologia romana é o equivalente ao deus grego Chronos. Sim, Chronos, o deus do tempo. Conta-se que Chronos comia seus filhos com medo de ser destronado. Para muitos, o tempo é o mais poderoso dos deuses, pois ninguém foge do tempo, uma hora você será “devorado” por ele. E Goya estava ali, amargo, chateado e com seus mais de 70 anos. Essa informação é reveladora, hein? E olha que é basicamente o título da obra. Algo simples, mas tão importante.

Se você notar, Chronos devora um filho, mas não é um bebê. O corpo mutilado é claramente de um homem adulto. Não se sabe ao certo o que Goya pensou ao representar tal forma, mas dada a sua história de vida, podemos imaginar que ele sofria com uma nostalgia pelos tempos de baladinha.

E aí, como foi essa experiência de leitura mediada? Pode ser que existam muitas outras informações acerca dessa obra específica. Mas pelo que a minha curiosidade me trouxe até o momento, minha leitura da tela mudou completamente. Digo por mim que o sentimento de repulsa agora é um mix de tristeza e de alerta. Não consigo mais olhar pra essa tela sem pensar que é o tempo (malvado, enorme e imbatível) engolindo a juventude.

Fato é que cada um lê o mundo conforme a sua bagagem e seu objetivo. E aqui faço questão de destacar uma fala do temido por alguns Paulo Freire, quando diz que “ler, não é caminhar sobre as letras, mas interpretar o mundo e poder lançar sua palavra sobre ele, interferir no mundo pela ação”.

Interpretar o mundo. Realmente, aprender a ler não se restringe às palavras. Lemos o mundo muito antes de conhecermos o alfabeto. Mas interpretar o mundo, além de depender da nossa bagagem, depende, essencialmente, da nossa curiosidade.

Esse é o primeiro passo da leitura crítica: ir além do que está explícito, além da percepção inicial, e ser curioso sobre o que circunda a obra (ou seria a vida?).

Escrito por
LUÍS H LINDNER

Investigador criativo de tecnologias

Francisco de Goya | El baile de San Antonio de la Florida, 1791–1792

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